sábado, fevereiro 27, 2010

O olhar puro, olhar apenas.

O olhar puro, olhar apenas.
Um olhar que esquece (coloca entre parêntesis) o que está significando, a intenção, o sentido. Fica-se pelo fluxo, pela folha cheia de letrinhas sem qualquer significação linguística.

O ver, pelo contrário, já padece desse vício mental. Dessa actividade fervilhante e muitas vezes entrópica. Focaliza, delimita, organiza, pré-condiciona o acto, a percepção.


"Trata-se em o Visível e o Invisível (Le Visible et l'Invisible de Merleau-Ponty) de 'superar' a fenomenologia, em particular a da percepção. [...] A dificuldade vinha da ligação que a noção de experiência estabelece entre os sentidos e a consciência. [24] [...]

A visibilidade secreta, a visão de dentro que atapeta a visão de fora não possui [em Merleau-Ponty] um estatuto claro. [33]

Talvez estas dificuldades de Merleau-Ponty se liguem ao facto de ele não distinguir o olhar da visão. [47]

Para ver, é preciso olhar; mas pode-se olhar sem ver. Pode-se até ver mais, olhando; não só receber estímulos , descodificá-los (ver), mas fazer intervir o corpo na paisagem. Entre o 'ver passar barcos' e 'olhar os barcos que passam', há a diferença entre a distância (entre o sujeito e os barcos) e uma subtil aproximação (de qualquer coisa que vem da passagem dos barcos para aquele que olha, e que determina a sua atitude)." [48]

"Olhar - não ver, unicamente - é dizer as coisas - não ainda nomeá-las - construindo um continuum articulado na visão maciça; é fazer irromper movimentos imperceptíveis entre as coisas, juntá-las em unidades quase discretas, amontoados, aglomerados, tufos, abrindo na paisagem brechas imediatamente colmatadas pelas pequenas percepções que compõem as articulações insensíveis" [52].


José Gil, A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e fenomenologia, Lisboa, Relógio de Água, 1996.


sexta-feira, fevereiro 26, 2010

As crenças criam as percepções

As crenças criam as percepções. Estas são apenas meios físicos, equilibrios liquidos e electromagnéticos. Mas muitos insistem em querer navegar com rota fixa confiando em instrumentos grosseiros de tipo racional. Que também são crenças.

Mais vale, como fazem alguns, aceitar o nomadismo, o fluxo constante.

Digo eu, pensando em voz alta.

Talvez tentando discernir no meio da corrente mas de uma forma suave, modesta, tranquila. Acreditar confiando nas suas percepções múltiplas e pessoais (um olhar de criança) sem necessitar de passar pelo crivo mental do aceitável, um juíz externo.

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Muitas vezes, quando escrevo no "messenger", uma dúvida me assalta.

Muitas vezes, quando escrevo no "messenger", uma dúvida me assalta. Estarei falando mesmo com alguém ou será que o meu diálogo é também, ou acima de tudo, interior?

Perguntam-me muitas vezes, do outro lado da linha telefónica ou TVCabo que suporta a internet, porque estou calado. Melhor, um outro ser também diz para dentro mexendo dedos sobre terminais negros porque estou calado. Contudo, curiosamente estamos sempre calados no messenger.

O fascínio da escrita é exactamente esse. Ser um fluxo de dentro, um diálogo connosco. Um sentir mais perto sem o incómodo da representação do face a face.


Por isso, costumo dizer a muitos dos meus amigos internéticos de uma forma provocadora:

"Não há, no mundo, coisa mais real e íntima do que a INTERNET, a escrita no messenger. O mundo virtual é muito mais real do que o dia a dia.".


O mundo do messenger pode ser, nalguns casos, um mundo de intimidade em que estamos mais próximos de nós, mais em intimidade com o nosso ser do que no dia a dia que nos ausenta, que nos transforma em mercadorias virtuais como diria o velhinho K. Marx.

Como sou do tempo dos chats nos IRCs, da magia do on-line através da escrita, sinto que algo está a desaparecer com a WEBCAM (para muitos, foi o grande salto...). Ainda hoje, não tenho WEBCAM o que me transformou numa espécie de "dinossauro" do messenger.

Chego a pensar que a intimidade da WEBCAM não é mais o que o medo do contacto íntimo da escrita tal como os filmes pornográficos não são mais do que um exorcismo do receio de amar.
Uma necessidade de voltar ao mundo normal do "oral", do falado, do ter um rosto e, principalmemte para o sexo masculino, um corpo pela frente. Trata-se de voltar à percepção normal do mundo (eu diria televisiva) evitando assim a dobra de uma percepção interior que a escrita, o diálogo interior permitiria.

Também sinto que a paixão, que surgia naturalmente no messenger e no chat do IRC (aconteceu-me!), tem os dias contados. A escrita através do teclado abria a ilusão de um outro ser gémeo. Por isso, era fácil a paixão. Ao estar em diálogo interior, uma ligação directa emergia em que o que contava era apenas aquilo que somos: pura energia, pura energia procurando o mimetismo da criança, pura energia procurando o olhar infinito da mãe.

Tudo isto me veio à minha cabeça depois de ler este texto (que nem sei como classificar) da Clarice.


Fiquei sem palavras. Ainda estou sem elas.... Despido.

Tal como ela diz, na magia da escrita/voz interior "me sinto fatal a despeito de mim".

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"Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediatamente, mas só a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou "ativa" nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido.

Escrevendo, tenho observações "passivas", tão interiores que "se escrevem" ao mesmo tempo em que são sentidas quase sem o que se chama de processo.

É por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim".


Clarice Lispector, Para não esquecer, 5ª ed., São Paulo, Siciliano, 1992.

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

As coisas. Eu devia vê-las, apenas vê-las

As coisas. Eu devia vê-las, apenas vê-las. E nesse momento mágico, a intensidade do olhar volta-se para dentro. Dobra-se abrindo um espaço enorme. Sente-se.

Vê-las até não poder mais. Vê-las até que algo se desloca. E uma paz enorme me invade.

Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.

Uma ciência do ver que não é nenhuma. É uma atenção em si. Um saber feito de saberes antigos.

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"Vive, dizes, no presente.

Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade. Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede. O que é o presente? É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. Eu quero só a realidade, as cousas sem presente. Não quero incluir o tempo no meu esquema.

Não quero pensar nas cousas como presentes, quero pensar nelas como cousas.

Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. Eu nem por reais as devia tratar. Eu não as devia tratar por nada. Eu devia vê-las, apenas vê-las. Vê-las até não poder pensar nelas, vê-las sem tempo, nem espaço, ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.

É esta a ciência de ver, que não é nenhuma."

Alberto Caeiro

terça-feira, fevereiro 23, 2010

Espelho Enevoado

"Há quatro mil anos, existia um jovem que morava perto de uma cidade rodeada de montanhas. O rapaz estudava para se tornar um xamã Tolteca, aprendia a sabedoria de seus ancestrais, mas discordava daquilo que aprendia. Algo dentro dele, dizia que existia algo mais além do que ele aprendia com seus professores.

Certo dia, enquanto descansava numa caverna, caiu num sono profundo e sonhou que via seu próprio corpo dormindo profundamente. Abandonou a caverna numa noite em que a lua nova encontrava-se no seu ápice. A noite estava clara, e ele ao olhar o céu viu milhares de estrelas. Um arrepio percorreu todo o seu ser, e ele sentiu que algo estava transformando sua vida para sempre. Olhou para suas mãos, sentiu o seu corpo e escutou sua própria voz que sai de seus lábios dizendo: “Sou feito de luz e de estrelas.

Visualizou novamente as estrelas no céu e percebeu que não eram estrelas que criavam a luz, mas antes a luz que criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”, acrescentou ele, “e o espaço no meio não é vazio.” Ele soube tudo o que existe num ser vivo, e que a luz é a mensageira da vida, porque está viva e contém todas as informações.

Passou a compreender que embora fosse feito de estrelas, ele não era essas estrelas. “Sou o que existe entre as estrelas”, pensou. Chamou as estrelas de tonal e a luz entre elas, de nagual, e soube que o que criava a harmonia e o espaço entre os dois é a Vida ou Intenção. Sem a Vida, o tonal e o nagual não poderiam existir. A Vida é à força do absoluto, do supremo, do Criador que cria tudo.

Foi isso o que ele descobriu: tudo o que existe é uma manifestação do ser que denominamos Deus. Tudo é Deus. E ele chegou à conclusão de que a percepção humana é apenas a luz que percebe a luz. Também viu que a matéria é um espelho – tudo é um espelho que reflete e cria imagens dessa luz – e o mundo da ilusão, o Sonho, é apenas fumaça que não permite enxergarmos o que realmente somos. “O verdadeiro nós é puro amor, pura luz”, disse ele.

Essa compreensão mudou sua vida. Uma vez que ele soube quem realmente era, olhou ao redor para os outros seres humanos e para o restante da natureza e ficou surpreso com o que viu. Viu a ele mesmo em tudo – em cada ser humano, em cada animal, em cada árvore, na água, na chuva, nas nuvens, na terra. E viu que a Vida misturava o tonal e o nagual de formas diferentes para criar bilhões de manifestações da Vida.

Naqueles poucos momentos ele compreendeu tudo. Ficou muito excitado, e seu coração encheu-se de paz. Mal podia esperar para contar a seu povo o que descobrira. Mas não encontrava palavras para explicar. Tentou falar com os outros, mas eles não conseguiam entender. Eles haviam percebido que o rapaz havia mudado, que algo deslumbrante se irradiava da sua voz e de seus olhos. Observaram que ele não julgava mais as pessoas e as coisas. Ele não se parecia mais com os outros.

O rapaz entendia as outras pessoas muito bem, mas ninguém conseguia entende-lo. Acreditavam que ele fosse a encarnação viva do Criador, ele sorriu quando escutou estes comentários à cerca de sua pessoa, e lhes falou: “É verdade. Sou o Criador, Mas vocês também o são. Somos o mesmo, eu e vocês. Somos imagens de luz. Somos Deus.” Mas mesmo assim, as pessoas não o compreendiam.

Havia descoberto que era um espelho para as outras pessoas, um espelho no qual podia observar a si mesmo. “Todos nós somos um espelho.” Viu a si mesmo em todos, mas ninguém o viu como eles mesmos. Compreendeu que as outras pessoas estavam sonhando, mas sem consciência, sem saber o que realmente eram. Não podiam vê-lo como eles mesmos porque havia um nevoeiro entre os espelhos. E essa parede era construída pela interpretação das imagens de luz – o Sonho dos seres humanos.

Então ele percebeu que logo iria esquecer tudo o que aprendera. Queria lembrar-se de todas as visões que tivera; portanto decidiu chamar a si mesmo de Espelho Enevoado, para que sempre soubesse que a matéria é um espelho e que a névoa do meio é o que nos impede de saber quem somos. Ele disse: “Sou Espelho Enevoado, porque estou vendo a mim mesmo em todos vocês, mas nós não reconhecemos um ao outro por causa do nevoeiro entre nós. Esse nevoeiro é um Sonho, e o espelho é você, o Sonhador.”

MIguel Ruiz, Os quatro compromissos. O livro da filosofia tolteca.

Ver aqui o livro completo:

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Carpe Diem

"Carpe Diem (em Latim) significa " colha o dia " ou " aproveita o momento ".

Essa regra de vida pode ser encontrada em "Odes" (I, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC), onde se lê:

Carpe diem quam minimum credula postero

(colha o dia, confia o mínimo no amanhã)."

Este presente parece sempre fugir entre as mãos.

Os gregos antigos, com razão, falavam de duas formas deste presente, do instante, do agora mesmo.

O tempo podia ser tanto o irreversível Chronos (deus do tempo) como o reversível Aion que é a eternidade, tudo recomeça em cada momento.

"Aion é o tempo superficial dos acontecimentos incorporais tomado em sua relação com o devir: remete ao passado e ao futuro simultaneamente.

Contrapõe-se a ele Cronos, que representa o tempo tomado em sua relação com o presente vasto e profundo, e que transcorre através da flecha homogênea e inexorável do tempo: do passado para o futuro – um tempo localizável, espacializado "

Ver aqui:

http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum...

O segundo, o cronos, passou a ser dominante. Mas na voz dos poetas é encarado com desconfiança.

É um tempo medido, é o tempo do trabalho mercadoria, pesado. Em que o nosso corpo/tempo é negócio.

O outro, o eterno, fica nos nossos silêncios. Nos nosso sonhos, nas crianças, nos animais, nos que sentem.

Também está na magia do cinema quando não é mercadoria dos centros comerciais e das pipocas.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

"Rapture" - Uma música de Laura Veirs



Ouvir esta música é uma experiência fascinante.
Uma meditação sentida sobre o mundo que nos rodeia.

Ou melhor, sobre o que resta da nossa
experiência do mundo quando abundam as mediações da imediatez: fotos,
gravações, vídeos. etc.

"And doesn’t the tree Write great poetry? Doing itself so well"

O que resta dessa experiência fundamental, única que passa por pensar,
sentir, saber olhar... Com tempo. Um olhar distraído. Sem se dar conta.

Como diz o poema, "Love of color, sound and words
Is it a blessing or a curse?"

"Rapture" de Laura Veirs

"With photographs
And magnetic tape
We capture
Pretty animals in cages
Pretty flowers in vases
Enraptured

And doesn’t the tree
Write great poetry?
Doing itself so well

Do you blame Monet?
His gardens in giverny
He captured
And lovely basho
His plunking ponds and toads
Enraptured

The fate of Kurt Cobain
Junk coursing through his veins
And young Virginia Woolf
Death came and hung her coat

Love of color, sound and words
Is it a blessing or a curse?
Enraptured"

Laura Veirs